Cobrança de ISS sobre shows e bandas gera insegurança

Gustavo Brigagão

Inegável que, tanto ou mais do que a elevada carga tributária, a insegurança jurídica é um dos males do sistema tributário brasileiro que mais angustiam os contribuintes, mais afastam investimentos no país e que mais servem de obstáculo a que os entes políticos tributantes possam se planejar com eficiência, fundamentados na obtenção de receitas orçamentárias determinadas com base em regras válidas e estáveis.

Clareza, sistematização e coerência na elaboração das normas que regem as relações jurídico-tributárias, principalmente daquelas que dirimem conflitos entre as múltiplas competências a que está sujeito o contribuinte, devem ser, portanto, inafastáveis parâmetros norteadores das atividades exercidas pelo legislador tributário.

Quando esses parâmetros não são observados, a temida insegurança jurídica invariavelmente se faz presente com tamanha força que é capaz de resistir até mesmo à aplicação de remédios judiciais cujo objetivo seria o de, em tese, eliminá-la.

Para exemplificar o que digo, volto à desastrosa transferência de competência para a cobrança do ISS do município de origem para o de destino (que já tive oportunidade de comentar neste espaço, em duas ocasiões — nas colunas publicadas nos dias 14/6/2017 e 16/8/2017), para tratar dos seus recentes desdobramentos.

Como já tivemos a oportunidade de expor, da infeliz importação de mandamentos da OCDE no sentido de que, atualmente, o melhor é adotar-se a tributação no destino (o que somente é adequado para países que contem com um sistema de tributação indireta civilizado, e não para sistemas como o nosso, em que essa tributação é subdividida em uma pluralidade de tributos e submetida a competências múltiplas), foram editadas normas no sentido de transferir a competência do
município em que localizado o estabelecimento
prestador para aquele, ou aqueles, em que localizados os
tomadores dos serviços, relativamente à cobrança do ISS incidente sobre alguns serviços, descritos nos subitens 4.22, 4.23, 5.09, 10.04, 15.01 e 15.09 da lista anexa à Lei Complementar 116/03. Cite-se, entre eles, os serviços de planos de saúde em geral, arrendamento mercantil (leasing) e administração de cartões de débito/crédito, de fundos quaisquer e de consórcio.

É flagrante a inadequação dessa transferência de competência tributária para o município em que localizado o tomador do serviço (promovida pela Lei Complementar 157/16), pois, entre os elementos de conexão colocados à disposição do legislador complementar para dirimir possíveis conflitos de competência municipal relativos à incidência do ISS (local do estabelecimento prestador, local em que o serviço é prestado, local do bem objeto da prestação do serviço, local da fruição do resultado do serviço e local do domicílio do tomador do serviço), este último, o do domicílio do tomador, por ser o que menor relação guarda com a circulação de riqueza que se pretende tributar, deve ser adotado somente em situações pontuais e excepcionais, como é o caso da importação de serviços e das outras duas únicas hipóteses em que essa atribuição de competência foi feita.

Não bastasse isso, a regra em si (da LC 157/16) foi redigida sem atenção ao seu principal objetivo, que era o de definir competência e dirimir possíveis conflitos dessa natureza, nos termos do artigo 146 da Constituição Federal.

De fato, ao não definir de forma clara o que se deveria entender por “tomador dos serviços”, a norma acabou por criar conflitos de competência, em vez de dirimi-los. Função oposta à que dela se esperava.

Foi o que ocorreu, por exemplo, com os serviços prestados por gestores e administradores de fundos de investimento. Quem seria o tomador desses serviços? O próprio fundo, ou os respectivos cotistas, que podem estar espalhados pelos diversos municípios que compõem a federação?

Só para citar outro exemplo, também foi o que ocorreu com os serviços de
planos de saúde coletivos, em que as pessoas físicas seguradas podem ser domiciliadas em municípios diversos daquele em que estabelecida a empresa contratante do respectivo seguro. Quem é o tomador do serviço, as empresas contratantes do seguro ou os segurados? Que município será o competente para a cobrança do ISS nessas circunstâncias?

Esses e outros fatores levaram a uma reação imediata da sociedade.

Ao que tenhamos notícia, foram ajuizadas, pelo menos, cinco ações em que esse deslocamento de competência foi questionado, uma delas, inclusive, proposta pela própria Associação Nacional dos Prefeitos e Vice-Prefeitos da República Federativa do Brasil (ANPV):

(i) ADPF 499 – Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNS): questiona apenas o deslocamento dos serviços de planos de medicina de grupo ou individual e outros planos de saúde;

(ii) ADI 5.840 – ANPV: questiona todos os serviços “deslocados” pela LC 157/16;

(iii) ADI 5.844 – Confederação Nacional das Cooperativas (CNCOOP) e Unimed do Brasil – Confederação Nacional das Cooperativas Médicas: questiona apenas o deslocamento dos serviços de planos de medicina de grupo ou individual e outros planos de saúde;

(iv) ADI 5.835 – Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif) e Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg): questiona todos os serviços “deslocados” pela LC 157/16;

(v) ADI 5.862 – Partido Humanista da Solidariedade (PHS): questiona apenas o “deslocamento” dos serviços de arrendamento mercantil e administração de fundos quaisquer, de consórcio, de cartão de crédito ou débito e congêneres, de carteira de clientes, de cheques pré-datados e congêneres.

As ADIs 5.840 e 5.844 foram extintas sem julgamento de mérito por questões processuais (ilegitimidade para ajuizar ação de controle concentrado). As ADIs 5.835 e 5.862 e a ADPF 499 (esta última convertida em ADI) foram admitidas e aguardam julgamento.

Sensibilizado com o argumento de que a LC 157/17 acabou por gerar conflitos, ao invés de dirimi-los (por deixar de estabelecer de forma clara o conceito de “tomador dos serviços”), em 23 de março, o ministro Alexandre de Moraes proferiu decisão monocrática na ADI 5.835 em que deferiu, ad referendum do Plenário do STF, a medida cautelar pleiteada para suspender a eficácia não só dos dispositivos da LC 157/16 que determinam a cobrança do ISS pelo município do tomador, mas de qualquer legislação municipal que tenha sido editada para implementar essa cobrança in concreto.

Transcrevo, abaixo, trecho relevante dessa decisão:

“Diferentemente do modelo anterior, que estipulava, para os serviços em análise, a incidência tributária no local do estabelecimento prestador do serviço, a nova sistemática legislativa prevê a incidência do tributo no domicílio do tomador de serviços. Essa alteração exigiria que a nova disciplina normativa apontasse com clareza o conceito de ‘tomador de serviços’, sob pena de grave insegurança jurídica e eventual possibilidade de dupla tributação, ou mesmo inocorrência de correta incidência tributária. A ausência dessa definição e a existência de diversas leis, decretos e atos normativos municipais antagônicos já vigentes ou prestes a entrar em vigência acabarão por gerar dificuldade na aplicação da Lei Complementar Federal, ampliando os conflitos de competência entre unidades federadas e gerando forte abalo no princípio constitucional da segurança jurídica, comprometendo, inclusive, a regularidade da atividade econômica, com consequente desrespeito à própria razão de existência do artigo 146 da Constituição Federal.

(…)

Diante de todo o exposto:

a) com fundamento no art. 10, § 3º, da Lei 9.868/1999 e no art. 21, V, do RISTF, CONCEDO A MEDIDA CAUTELAR pleiteada, ad referendum do Plenário desta SUPREMA CORTE, para suspender a eficácia do artigo 1º da Lei Complementar 157/2016, na parte que modificou o art. 3º, XXIII, XXIV e XXV, e os parágrafos 3º e 4º do art. 6º da Lei Complementar 116/2003; bem como, por arrastamento, para suspender a eficácia de toda legislação local editada para sua direta complementação”.

Essa decisão foi proferida com fundamento no artigo 21, V, do Regimento Interno do STF, que autoriza, em caso de urgência, a concessão monocrática de “medidas cautelares necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa”.

Nos termos do artigo 11, parágrafo 1º, da Lei 9868/99, a medida cautelar em ADI é concedida com efeitos erga omnes e ex nunc (ou seja, vale contra todos e produz efeitos a partir da data da sua concessão), salvo se se entender pela necessidade de atribuição de eficácia retroativa (ex tunc) à medida concedida.

Como o ministro Alexandre de Moraes não foi expresso quanto aos referidos efeitos retroativos, temos que, a partir da sua publicação (4/4/2018), foi suspensa a cobrança do ISS incidente sobre os serviços em exame no município em que localizado o seu tomador (que vigorou até então, por três meses) e restabelecida a cobrança do ISS sobre os mesmos serviços no município onde estabelecido o respectivo prestador.

Isso porque, salvo disposição expressa em contrário, a suspensão de eficácia de determinada norma em ADI, de forma provisória (em medida cautelar) ou definitiva (por decisão plenária), torna aplicável, provisória ou definitivamente, a legislação anterior acaso existente (Lei 9.868/99, artigo 11, parágrafo 2º). Note-se que não há aqui repristinação, na medida em que, por ser a lei revogadora inconstitucional, ela nunca terá efetivamente produzido o efeito de revogar a anterior.

Mas onde estará a insegurança jurídica nesse cenário? Perguntar-se-á o leitor.

A existência dessa insegurança dependerá (i) do teor da decisão que venha a ser tomada pelo Plenário do STF, quando do exame da matéria, (ii) do tempo que demorar para tomá-la e (iii) da modulação de efeitos que venha a ser adotada.

Tendo em vista esses parâmetros, o cenário que gerará maiores transtornos, tanto para o Fisco quanto para o contribuinte, será aquele em que o Plenário do STF vier a considerar constitucional a norma em exame, sem modulação de efeitos.

De fato, nessa hipótese, a liminar não terá sido referendada e será considerada como se nunca tivesse existido.

Consequentemente, os contribuintes (i) serão considerados devedores do ISS que não terá sido pago ao município onde localizado o tomador dos serviços durante todo o tempo em que vigorou a medida cautelar (e, nesse caso, a extinção do débito deverá ser realizada com encargos moratórios); e, se não quiserem incorrer em maiores prejuízos, (ii) terão que repetir o imposto pago, “equivocadamente”, durante esse mesmo período, ao município em que localizado o estabelecimento prestador (respeitado o prazo prescricional de cinco anos, nos termos do artigo 168 do Código Tributário Nacional).

Situação muito similar ocorreu no julgamento da ADI 1.851, em que o Tribunal Pleno do STF, por unanimidade de votos, suspendeu cautelarmente a eficácia da cláusula segunda do Convênio 13/97 (que determinava que o fato gerador presumido do ICMS-ST “para frente” seria definitivo, não sendo possível a restituição/cobrança complementar quando a operação/prestação subsequente se realizasse com valor inferior/superior) e, quatro anos após, cassou a medida cautelar e julgou constitucional a referida norma, sem modulação de efeitos. Isso mesmo, sem modulação de efeitos!

Esse quadro de incerteza decorre, como dito, do fato de que, salvo modulação de efeitos, a cassação de medida cautelar lhe retira os efeitos que lhe são próprios desde a data da sua concessão. Ou seja, o contribuinte que age em conformidade com os seus mandamentos estará sujeito às normas cujos efeitos foram restabelecidos como se a medida cautelar jamais tivesse sido concedida.

Esse resultado acaba por frustrar o próprio propósito das decisões liminares, que é o de resguardar o resultado útil do processo. Nesse sentido, as lições de Hely Lopes Meirelles, Arnoldo Wald e Gilmar Mendes:

“(…) As decisões liminares são precárias e estão sempre sujeitas a confirmação no julgamento de mérito dos processos. Na hipótese de o julgamento de mérito não coincidir com o conteúdo da medida cautelar anteriormente deferida, é possível que o decurso do tempo, mais uma vez, influencie na decisão que venha a ser adotada. Isso porque, embora a medida cautelar tenha sido concedida para evitar a instalação/agravamento de um quadro de insegurança jurídica, caso não haja confirmação da liminar no julgamento de mérito, a lei com suspeita de inconstitucionalidade pode ter ficado suspensa por anos e, em consequência, gerar o efeito inverso ao que objetiva, isto é, a incerteza das relações jurídicas firmadas na época em que vigorou a medida liminar” (MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações constitucionais. 37.ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 459)

Em decorrência disso, mister se faz que, caso o Plenário entenda ser constitucional a atribuição de competência ao município em que localizado o tomador dos serviços (o que se admite para argumentar), sejam também modulados os efeitos dessa decisão de forma a que permaneçam preservadas as relações jurídicas firmadas no período em que a medida cautelar concedida tenha vigorado. Nesse sentido, vale revisitar as lições de Alberto Xavier abaixo transcritas:

“É certo que as medidas liminares, de caráter cautelar, são por definição provisórias. Mas a provisoriedade significa tão somente que a sua subsistência no futuro depende de posterior decisão baseada em cognição plena, mas não significa que os efeitos entretanto produzidos, válida e eficazmente, possam ser considerados, em caso de decisão final desfavorável, como se nunca tivessem existido. O princípio da proteção da confiança (…) corolário do princípio da segurança jurídica, que é alicerce do Estado-de-Direito, exige que se respeite a eficácia de atos válidos, à sombra dos quais se geram expectativas e se estabilizam relações jurídicas” (XAVIER, Alberto. Do lançamento, teoria geral do ato do procedimento e do processo tributário. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 458).

Pelo fato de o artigo 27 da Lei das ADI somente autorizar a modulação de efeitos quando o Plenário do STF declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, poderia surgir a dúvida relativa à possibilidade de essa modulação ocorrer na situação inversa: de declaração da constitucionalidade da norma. Parece-nos que sim, e os nossos fundamentos coincidem com os da melhor doutrina, que admite essa modulação quando se tratar de declaração de constitucionalidade que cassa liminar anteriormente deferida em sentido contrário:

“(…) Quando o STF, em ação direta de inconstitucionalidade, concede medida liminar com eficácia geral suspensiva dos efeitos da norma atacada e, ao final, passado largo período de tempo em que a norma foi provisoriamente considerada ineficaz, deixa de confirmar a decisão original para considerá-la constitucional (…) mesmo que se trate de (…) declaração de constitucionalidade, deve ser promovida a aplicação da regra moduladora” (MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro: administrativo e judicial. 9. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 725/726)

Atualmente, aguarda-se o julgamento de três embargos de declaração opostos pela Confederação Nacional dos Municípios e pelos municípios de Poá e São Bernardo do Campo (todos admitidos como amici curiae na ADI 5.835), em face da decisão monocrática proferida pelo ministro Alexandre de Moraes. Alguns deles buscam antecipar a modulação de efeitos que se espera do Tribunal Pleno, quando do julgamento do mérito da matéria.

E a ação de consignação em pagamento? Ela não seria uma alternativa para que os contribuintes não venham a ser obrigados a pagar encargos moratórios sobre valores não recolhidos aos municípios em que localizados os tomadores dos serviços, caso o Plenário do STF casse a medida cautelar concedida e julgue constitucional o deslocamento de competência promovido pela LC 157/16?

A rigor, não, porque essa ação só seria cabível se comprovada a existência de cobrança simultânea (ou sua iminência) pelos municípios do prestador e do tomador.

Nesse sentido, Sacha Calmon Navarro Côelho:

“(…) A existência concreta do concurso de exigências por mais de um Fisco tem de ser comprovada, sob pena de carência da ação. Imaginem-se dois municípios exigindo o ISS sobre um mesmo fato gerador. Há que provar que ambos estão a exigir, a um só tempo, o imposto” (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário, Ed. Forense, 9ª ed., 2008, pág. 839).

E Pontes de Miranda:

“Quando é que a pretensão é ‘disputada’ por mais de um pretendente? Havemos de entender quando haja duas ou mais de duas pessoas que se digam com pretensão à prestação, o que supõe, não simples dúvida, ou suspeita, mas situação caracterizada de disputa, e.g. lide, prova de discussão sobre a legitimação de direito material extrajudicial” (PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro, Forense, 1997, t. XIII, p. 30).

Tendo em vista que estão suspensas pela decisão monocrática as normas que poderiam fundamentar a cobrança do ISS pelo município do tomador, o único sujeito ativo competente, pelo menos por ora, é o município do prestador. Logo, somente caberá ação consignatória na improvável hipótese em que o município do tomador desrespeite a referida decisão e cobre do contribuinte o imposto mesmo nessas circunstâncias.

Assim, o cenário que melhor se adequará à tão almejada segurança jurídica será mesmo aquele em que haja a confirmação da medida cautelar concedida pelo ministro Alexandre de Moraes e a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos da LC 157/16 em exame, com efeitos ex tunc. Dessa forma, serão consolidados os pagamentos feitos ao município onde estabelecido o prestador, na vigência da referida medida, e será viabilizada a repetição do indébito, relativamente aos valores pagos ao município onde localizado o tomador dos mesmos serviços, no período compreendido entre 1º/1/2018 e 3/4/2018.

Se a decisão do Plenário for pela constitucionalidade dos referidos dispositivos da LC 157/18, que sejam, pelo menos, modulados os seus efeitos, de forma a validar os pagamentos que tenham sido feitos ao município onde estabelecido o prestador, na vigência da medida cautelar concedida.

Tudo em prol da segurança jurídica.

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Gustavo Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto, Rezende e Guerra Advogados; presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF); membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association (IFA); presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro (BRITCHAM-RJ); conselheiro da OAB-RJ; diretor de Relações Internacionais do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa); diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); e professor em cursos de pós-graduação na Fundação Getulio Vargas.

Revista Consultor Jurídico, 25 de abril de 2018, 8h00

O amor enquanto herança de um legado paterno

Minha filhinha ficou uns dias comigo. Várias vezes conversamos sério. Ela é madura. Sabe tudo sobre a vida e a morte. Sabe sobre posses e bens. Sabe a diferença entre pobreza e riqueza. Sabe que estou doente. Sabe que vou deixá-la.

Nina se refugia dentro de mim. Dorme segurando meu dedo do pé. Desde que nasceu, criei-a num ambiente de muito amor, muito carinho e muito afeto.

A destruição era um scripit provável. Nina foi forjada no meio de uma tempestade. Aprendeu a sofrer e a incorporar a dor. Só quem a conhece e só para quem ela se abre – totalmente – é para mim. O resto é dissimulação.

Pois no sábado a noite, conversando com ela, perguntei que herança ela herdaria de mim, qual era o saldo de tudo.

Prontamente, na ponta da língua, Nina me veio com uma resposta surpreendente.

– Vou herdar de ti o amor, pai.

– O amor verdadeiro.

Nina surpreendeu-me ao extremo. O amor é uma herança abstrata, inquantificável. Porém, surpreende-me que ela tenha esse juízo de mim.

Ontem ela se foi. Seguiu seu destino, sem o pai, longe do pai. Nós que formamos a mais perfeita e simétrica relação de amor paterno, fomos condenados a vivermos separados em vida. Mas a herança que ela assumiu que herdará de mim é chocante.

Ela me disse que no Paraíso a gente poderá viver como pai e filha, juntos para a eternidade. Bobagem ou não, é um sonho que alimenta nossas almas, para não chorar, para conter as lágrimas. A fantasia, a arte para fugir da realidade.

Quando ela partiu, fiquei pensando em suas palavras, nunca tinha ouvido um filho dizer que herdaria do pai um valor assim tão subjetivo.

Deitei-me, olhei suas bonequinhas, seus brinquedinhos, sua caminha, suas roupas. Já interiorizei a morte de nossa relação me vida, já interiorizei a força de belzebu … Mas nem todas as forças de destruição e da maldade foram capazes de matar o alicerce mais bem fincado em nossos corações: o amor.

Percebi, então, que nada foi em vão, que pessoas boas tem gratidão em suas almas, minha filhinha é apenas uma vítima.

Deitei-me, ontem, pronto para tudo. Se Deus me levasse, porque vai me levar de um momento para outro, mas a certeza ficou, ficou uma semente, uma semente rara, não ficarão campos, gados, casas, terrenos, mas ficará o mais subjetivo dos juízos, o amor.

Assim, encerro está breve crônica. Uma crônica de um pai que deixou o amor como legado de uma herança paterna.

 

 

 

 

 

Só uma reforma pode estancar a decomposição do Judiciário

Ribamar Fonseca – Brasil 247

A justiça brasileira perdeu o rumo. E, também, o respeito e a confiança do povo. Desde quando se politizou, abandonando a sua missão constitucional, o Judiciário desprezou a Constituição, passou a fazer política, usurpou atribuições exclusivas do Executivo e do Legislativo, assumiu poderes extraordinários, criou um clima de insegurança jurídica no país e se tornou o principal protagonista da vida nacional.

A mídia, a maior responsável por essa nova situação, gerou celebridades, super-heróis, estimulando vaidades e, ao mesmo tempo, provocando temores, o que lhe assegurou praticamente o controle sobretudo dos tribunais superiores. Para isso muito contribuiu a criação da TV Justiça que, embora importante para garantir a transparência das decisões, entre outros, do Supremo Tribunal Federal, também serviu para massagear egos de alguns magistrados que, mais preocupados em posar para o público e agradar a mídia, usam uma linguagem empolada e ininteligível para tomar decisões nem sempre justas. Já há até quem diga que esta é a pior composição da Corte Suprema, onde um ministro, Roberto Barroso, se atribui poderes para escolher os candidatos ao Planalto.

Diante da deterioração da Justiça, por conta do comportamento de parte dos seus membros, o deputado Wadih Damous, ex-presidente da OAB do Rio de Janeiro, passou a defender uma urgente reforma do Judiciário, com o fechamento do Supremo Tribunal Federal. “Temos que redesenhar o papel do Poder Judiciário, o papel do STF”, ele disse, acrescentando: “Temos que criar uma Corte Constitucional, com seus membros detentores de mandato”.

Na verdade, a ideia dessa reforma não é nova, porque constatou-se que a Constituição de 1988, longe de promover realmente mudanças no Judiciário, praticamente apenas repaginou o que funcionava na ditadura, mantendo o mesmo figurino mas conferindo-lhe muito mais poderes. Na época chegou a ser proposta a criação do Tribunal Constitucional, com a fusão do STF e do STJ, mas a ideia foi abandonada diante da pressão de corporações jurídicas. A reforma, no entanto, se faz urgente porque o Judiciário deixou de ser uma garantia para a sobrevivência da nossa jovem democracia sempre ameaçada. E, também, porque, segundo o ministro Gilmar Mendes, do STF, “a maior ameaça à democracia no Brasil não vem hoje das Forças Armadas, mas do Ministério Público e agrupamentos de juízes”.

Com efeito, vivemos hoje sob uma ditadura disfarçada da toga, em que um juiz de primeira instância, transformado pela mídia na maior autoridade da Justiça brasileira, atropela impunemente a Constituição e faz as suas próprias leis, tomando decisões que, mesmo reconhecidas como ilegais, são confirmadas pelas instâncias superiores. O Supremo Tribunal Federal, que deveria reparar as injustiças, é o primeiro a estuprar a Carta Magna, que tem o dever de cumprir e fazer cumprir, invalidando o seu texto para tornar válidas as suas interpretações. O ex-ministro Nelson Jobim, que foi presidente da Suprema Corte, em recente entrevista criticou esse comportamento do STF, considerando, principalmente “o fato de movimentos teóricos começarem a dizer que o peso da literalidade da Constituição está sujeito a interpretações que importam em mudar inclusive seu conteúdo”.

Jobim abordou a questão da prisão em segunda instância lembrando que, segundo a Constituição, “ninguém será culpado antes do trânsito em julgado, mas agora se dá uma interpretação de que a prisão no segundo grau é possível. Quer dizer, criaram mecanismos estranhos e difíceis: para ser preso ninguém precisa ter culpa”. Suprimiram a presunção de inocência. O ex-ministro, que criticou a ministra Carmem Lucia por não colocar a questão em pauta, afirmando que a presidente do Supremo “não é a dona da pauta”, disse que “em alguns casos os juízes começam a julgar a lei, ao invés de aplica-la”. E acrescentou: “Não compete ao tribunal o “eu acho que é melhor”. A sentença não é o lugar para o juiz dizer o que ele acha, é para ele dizer o que a lei diz. E aí o que acontece é essa insegurança e esse problemaço todo”.

O ministro Gilmar Mendes tem a mesma opinião. Em entrevista ao programa Frente a Frente, da Rede Vida, ele disse que “o Estado Democrático de Direito tem uma fórmula muito simples: todos estão submetidos à lei.

Quando se começa a transformar a lei para o ‘eu acho que’, para se traduzir o sentimento social, a gente rompe com esses critérios. Em alguns momentos, a ameaça à democracia pode vir do Ministério Público”, exemplificou. O ministro acusou ainda a Operação Lava-Jato de práticas abusivas, como prisões provisórias alongadas sem justificativa ou detenções para forçar delações premiadas, que criam um efeito negativo no sistema. Na verdade, desde o surgimento da Lava-Jato essas práticas se tornaram rotina sob o argumento de que vale tudo para combater a corrupção.

O ministro Ricardo Lewandowski já havia dito, no seu voto sobre o habeas corpus de Lula, “que o combate à corrupção não justifica a flexibilização de dispositivo constitucional”. O que surpreende, no entanto, é que apesar da consciência disso, o Supremo até hoje nada fez para conter os abusos de Moro, muito menos o CNJ.

Gilmar questionou também, no mesmo programa, o discurso moralista dos que atuam na Lava-Jato, citando como exemplo o juiz Marcello Bretas, da 7ª. Vara Criminal do Rio de Janeiro, e sua mulher, também juíza, que recebem dois auxílios-moradia mesmo morando juntos e tendo imóvel próprio, “o que torna o benefício ilegal”, acentuou. Constata-se desse modo, sem muita dificuldade, que a Lava-Jato não passa de uma grande farsa, usando o combate à corrupção, desde o início do seu funcionamento, como pretexto para atingir um objetivo político: impedir Lula de voltar à Presidência da República. Com o apoio da mídia, em especial da Globo, que imbecilizou grande parte da população batendo diariamente na tecla da corrupção como cortina de fumaça para encobrir as grandes negociatas envolvendo o nosso petróleo e outras empresas, como a Embraer e a Eletrobrás, a Lava-Jato não apenas atuou politicamente para tornar Lula inelegível como, também, para destruir a nossa economia, em especial a do Rio de Janeiro, e promover o desemprego em massa. E contribuiu, decisivamente, para o processo de decomposição do Judiciário.

Como não há, na linha do horizonte, nenhuma perspectiva de mudança no comportamento político do Judiciário, agravado com a sua evidente contaminação pelo ódio disseminado pela mídia – a melhor prova disso é a insistência da juíza Carolina Lebbos em proibir visitas a Lula no cárcere em Curitiba e a insânia do juiz Afonso Henrique Botelho, da 2ª. Vara de Petrópolis, em apelar no seu facebook para que “alguém agrida a senadora Gleisi Hoffman com uma cusparada no meio das fuças, um chute no abundante trazeiro ou uma bolacha na chocolateira” – parece que a única opção, mesmo, é a reforma, com a fusão dos tribunais superiores, o estabelecimento de novos critérios para indicação dos ministros e, também, a fixação de mandatos; novos critérios também para os concursos para juízes e uma redução dos seus poderes. O Congresso poderá fazer isso com uma emenda à Constituição, mas provavelmente só o próximo, a ser eleito em outubro vindouro, porque esse que está aí parece não ter autoridade moral para tanto. De qualquer modo, o deputado Wadih Damous deve desenvolver um amplo trabalho junto a seus pares para alcançar esse objetivo, de importância vital para que tenhamos uma Justiça realmente justa, confiável e respeitada.