Sou o inverso da lógica cartesiana e também sou escravo das convenções sociais

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*JULIO CESAR DE LIMA PRATES

Santiago, como toda a pequena e média cidade, tem seu espaço físico dividido entre farmácias, bares, igrejas evangélicas e moradias mescladas com o comércio.

Paira uma atmosfera tétrica sobre os céus noturnos de Santiago. Nuvens cinzentas e escuras cobrem as estrelas e movem-se como se ensaiassem um balet em câmera lenta, um longo vem-e-vai sem começo e sem fim, apenas passeante e misterioso. Um vento frio e levemente forte parece conduzir segredos não revelados da angústia de uma sociedade. Ao contrário da tradicional alegria nos sorrisos, do gestos expansivos e festivos, noto as pessoas retraídas e querendo buscar algo de dentro de si mesmas. É o frio da noite, parece prelúdio do outono. Paira uma sensação de introspeção coletiva e nesse quadro sombrio debruço-me na vã tentativa de decifrar o imaginário social. Saio para fora da cidade e contemplo a paisagem noturna ao longo, o lusco-fusco dos faróis e luzes, o silêncio cortado pelos sons dos animais noturnos. Ecos de músicas, vozes perdidas se entrelaçam no mistério que reina.

Penso na razão de ser da cidade, na aglutinação de pessoas, nos bairros, nos serviços públicos, no trabalho e na lógica que alimenta a vida, com seus mistérios, costumes, ritos e mitos. O hospital, majestoso, é um símbolo da vida pari passu  as cercanias mortuárias de funerárias de plantão, ávidas por um cadáver.  E isso não é redundância, existem muitos cadávares andando pelas ruas, sobre esses Nietzsche já vociferou. Penso que poderiam estar noutro lugar, seria mais confortante para os doentes e inválidos que sabem que o próximo leito é o catre do necrotério. Aliás, outro dia, um sábio ignorante desses que faz escola em nossa cidade, ironizou de mim que escrevi sobre os cadáveres mortos. Se esse tolo ao menos conhecesse as metáforas de Nietzsche aos cadáveres, homens vivos, acríticos, que são conduzidos pelos outros, pouparia-me de explicações idiotas.

Penso nos ritos fúnebres pelos quais todos nós passamos um dia. Cerimônias, rezas e orações, cortejos e tudo é compreensível pela linguagem dos semblantes, que não se expressa, apenas exprime uma feição de dor.

Mas tudo são ritos. Do encontro de um casal a geração de uma criança, o berçário, a lógica dos primeiros passos, a educação, o lar e a família. Em meio a tudo isso, as convenções e os códigos morais. A televisão substituiu a velha moral dos livros e ensina novos costumes ao coletivo social pela cabeça única de um diretor em busca de audiência. Noto famílias hipenotizadas e presas a magia fantástica da telinha que seduz, dita regras e molda comportamentos.

Pelos cantos da cidade, escolas, quadras de esportes, bares, praças, clubes, ruas, postes de luzes, canos conduzem água, é a corporificação de infra-estrutura necessária para ser: cidade.

No meio de tudo, homens e mulheres, com seus sonhos, decisões, buscas, manifestações. Nós, criamos e tentamos traduzir um pouco do que vemos, fizemos da informação, um comércio. Os agentes de repressão do Estado agem pela manutenção da ordem e existem na suposição da desordem. Crianças violentadas, agressões, ódios que afloram, comportamentos que expressam a violência, manifestação de apelo aos instintos, eis que todos precisam de um regramento forte por normas de conduta e convívio sociais. Psicologia do ajuste, psicanálise coletiva, direito da repressão e opressão, pobres em seus cantos e ricos em suas mansões. Nada de arte de roubos e furtos, o caminho pode ser o presídio, o enjaulamento. Os agentes estão a postos. Cuidando, ganham para isso, são pagos pela lógica de um sistema tributário perverso.

Denominações religiosas acotovelam-se na disputa pelo exército de uma multidão que insiste em segurar-se numa crença e numa fé, mesmo que essas sejam sintetizadas e sistematizadas por homens em busca de poder e império. E o ópio do povo, crack do povo, cocaína do povo, Marx usou ópio devido a época, hoje seria uma droga sintética qualquer … do povo. Até eu preciso desse ópio.

Penso na tolice e nas mentiras que grassam. A lógica da vida é perversa, pois somos acostumados a mentira e a ruptura com essa pode significar o mais terrível exílio social. É um exílio atípico, dentro de nós mesmos, no seio social, que pune com as regras invisíveis.

E continuo olhando a noite de Santiago. Andando sem rumo, tentando decifrar a lógica embutida em cada terreno, em cada casa, em cada carro, em cada bairro. Andando, perambulando, vejo lojas, vitrinas, bares, comércio.

Sinto asco de tudo e nego-me a ser Descartes e a lógica de um funcionamento social como um aparelho humano. Para que discursos metódicos? Há um pavor de tetricidade em tudo, inclusive no gozo; não sem razão David Cooper proclamou o orgasmo como um mergulho irracional na morte e a certeza do regresso, misteriosamente, assegurado.

Nesse pavoroso juízo social em que as instâncias bachelarianas apresentam-se tênues, extremamente frágeis, resta-me apenas a maldita e maravilhosa dialética e a relativização quase absoluta de tudo.

A questão central de tudo é a aceitação das convenções, posto que está indicado o caminho da redenção. O inverso, é a maldição social. Ainda bem que a moderna era da telemática soou um conforto para os malditos, deixando a expressão on line. Mas mesmo para esses malditos, o custo da maldição ainda é aceitação mínima de algumas regras, senão restará o abismo total: a palidez de um túmulo, o asilo da decrepitude social ou a degenerescência progressiva até a consumação física do corpo.

Racionalizando tudo isso, vivo. Fujo na literatura, passo viajando e em cada viagem descubro-me mais encerrado em mim mesmo. É o custo de não aceitar as convenções e da descoberta de toda a lógica que encerra um agrupamento social. Resta-me escrever como uma forma de vingança, embora arda o custo de saber que raros conseguem ler-me.

Quisera ser mais fantasia, cobiço a fantasia, preciso da fantasia.  Enquanto nada acontece, escrevo enquanto olho a cidade noturna. Penso, logo sou um cadáver em Santiago. Para eu ser a lógica cartesiana, não posso pensar e nem ser o que sou. Por isso, tantos não pensam e aceitam tanta imbecibilidade. Ou se pensam, fingem que não pensam para serem aceitos. Somos todos escravos das convenções sociais.


*É escritor, autor de 6 livros, jornalista brasileiro registrado no Ministério do Trabalho sob nº 11.175, jornalista com registro internacional nº 908225, Bacharel em Direito, em Sociologia e em Teologia.  Pós-graduado em Leitura, Produção, Análise e Reescritura Textual. Também é Pós-graduado em Sociologia Rural.

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