Por Mauro Luis Iasi.
“O ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra”
– Walter Benjamin, Teses ‘Sobre o conceito de história’. (p.83)
Quando estudava o golpe de 1964 me chamou a atenção o fato de que, nos momentos iniciais daquele processo histórico, muita gente nem se dava conta de sua dimensão. O PCB orientava seus militantes a não resistir ao que parecia mais uma das muitas tentativas de interromper a frágil democracia brasileira. Ao mesmo tempo, lideranças políticas como Juscelino, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto discutiam as alternativas eleitorais para as eleições de 1965.
Na verdade, haviam ocorrido algumas tentativas desde a morte de Getúlio que acabaram sendo abortadas. Os próprios militares indicavam o caráter temporário da Junta Militar e a manutenção das eleições e dos partidos políticos. Tudo mudaria com o AI-2 em 27 de outubro de 1965 que determinava o fim das eleições diretas para Presidente da República, extinguia os partidos políticos existentes, dava poderes ao Executivo para cassar mandatos e suspender direitos políticos – poderes extraordinários atribuídos à Junta em caráter temporário que deveria se manter até janeiro de 1966 e que o AI-2 prorrogava até março de 1967 (ver A pequena história da Ditadura de José Paulo Netto. São Paulo: Cortez, 2014, p 99-100).
Seria interessante refletirmos sobre este interregno. Muitas são as diferenças entre os dois contextos, mas devemos destacar duas principais: (1) o contexto internacional da Guerra Fria e a onda de intervenções armadas comandadas pelo imperialismo norte-americano em todo o continente latino-americano; (2) e o caráter das reformas de base do governo João Goulart. Estes dois fatores implicavam em uma conjuntura extremamente dramática. Por motivos já amplamente estudados por Florestan Fernandes em seu A revolução burguesa no Brasil, o segmento militar não entraria em cena como um acidente ou casualidade, mas respondendo ao caráter do capitalismo dependente e a forma como acabou por se impor a ordem capitalista em nosso país.
Hoje vivemos um cenário muito distinto. Um momento mundial de derrota da perspectiva revolucionária, e mesmo de iniciativas reformistas dignas deste nome, que se refletiu no Brasil em um longo percurso de conciliação de classes que não ameaçou a ordem capitalista. Esses fatores marcam diferenças que podem explicar a forma que assumiu o desfecho que interrompeu o mandato da presidente eleita.
Em linhas gerais podemos afirmar que o ataque ao governo do PT e seus aliados, protagonizado em parte por estes mesmos aliados, e a relativamente baixa capacidade de reação dos depostos e suas bases sociais, explica o fato da interrupção institucional não exigir uma presença marcante das forças repressivas. Soma-se a isso o fato de que os golpistas contam com a chancela do Congresso Nacional, do Judiciário e das grandes corporações midiáticas, além de terem consolidado uma base social relativamente ampla de segmentos que foram tomados pelo discurso ideológico contra a corrupção e pela manipulação do reacionário mito anticomunista.
Caso nos detivéssemos nestes elementos, poderíamos afirmar que a transição poderia se dar mantendo-se a forma de um Estado de Direito, isto é, sem os elementos que marcaram claramente o transito à ditadura na década de 1960. Considerando a lúcida análise de José Paulo Netto já citada, 1964 marca, na forma e no conteúdo, uma ditadura. Isto porque se impôs pela força valendo-se diretamente da violência e da coerção, restringiu os direitos políticos, criminalizou a atividade oposicionista, feriu os direitos humanos mais elementares, impediu a alternância do poder e foi obrigada a renegar instituições políticas e jurídicas reconhecidas em um Estado “democrático” (Netto, op. cit, p. 83).
O que vemos hoje é uma situação aparentemente paradoxal. Evidentemente a interrupção do mandato presidencial só pode se dar em choque com um ordenamento institucional e jurídico estabelecido, mas a forma na qual se processou o ataque buscou revestir-se de legalidade. O zeloso acompanhamento do STF foi essencial para garantir esta cortina de legalidade para acobertar um ato ilegítimo. O cenário conjuntural descrito permite aos usurpadores alegar a continuidade da normalidade institucional, a permanência das regras da disputa política eleitoral e, portanto, a possibilidade da alternância política, o uso seletivo da perseguição política, aqui também encoberta de uma judicialidade que busca legitimá-la.
A questão que se coloca, portanto, é até que ponto o desdobramento do cenário atual nos leva ou não a uma Ditadura? A julgar pelos elementos apontados, faltaria o uso direto da coerção e da violência como meio direto de impor uma nova ordem. Por mais aguda e dramática que seja a conjuntura marcada pelo ajuste imposto, a restrição de direitos e da criminalização da resistência dos trabalhadores e dos movimentos sociais, a violência da repressão ao dissenso, assim como a violência urbana cotidiana, ainda não se verifica aquilo que marcaria a Ditadura. Mas, estaríamos apenas naquele momento que a antecede este desfecho, ou estaríamos diante de uma nova forma de ditadura?
Em seu Estado de exceção (São Paulo: Boitempo, 2005), o filósofo italiano Giorgio Agamben nos afirma, resgatando as teses centrais de Carl Schimitt, que estes fenômenos ocupam uma área paradoxal entre o direito público e o fato político, de forma que sua relação com o quadro jurídico é mais complexa que aparenta, isto é, muitas vezes estão além do direito estabelecido, mas não exatamente fora dele. É o caso do “estado de sitio” ou “estado de guerra”, levando Schimitt a considerar a possibilidade de uma “ditadura constitucional”. Agamben opta pela expressão “estado de exceção”, com a ressalva de Walter Benjamin segundo a qual, em nossos tempos, esta “exceção” é na verdade a regra geral.
Ainda que toda a base das reflexões seja a ascensão do nazismo e o contexto que antecede a Segunda Guerra, os exemplos mais contemporâneos nos são mais significativos. Para citar apenas dois exemplos: o Patriot Act nos EUA e as leis anti-imigração na Comunidade Europeia. São decretos que efetivamente suspendem direitos, desconsideram prerrogativas democráticas e operam poderes discricionários contra pessoas, típicos de uma ditadura, no entanto mantendo, no essencial, todo o arcabouço jurídico e político do Estado democrático constituído.
A assertiva benjaminiana nos parece essencial. Não se trata de suspender a democracia momentaneamente para “salvar a democracia”, para responder a um grave momento de crise, mas de uma disposição dos Estados modernos em combinar meios jurídicos e extrajurídicos, da mesma forma que sempre se combinou meios coercitivos e de consenso como nos alertava Gramsci. A consciência de nossa época parece ter desenvolvido a curiosa certeza de que esta combinação se daria no quadro do chamado Estado Democrático, mas os acontecimentos mundiais e nacionais parecem apontar em outra direção.
A profundidade da crise do capital exige um brutal ataque não apenas aos trabalhadores, como prova a reversão de direitos no campo do trabalho, mas à própria humanidade, como fica evidente na crise dos refugiados na Europa e na barbárie nas regiões que originam o problema assoladas por guerras de desestabilização com enorme poder destrutivo. O mundo não é mais dividido em uma área onde reina o Éden de direitos e um “terceiro mundo” condenado a violações e exploração brutal da dignidade humana: a barbárie se instala no próprio centro e a periferia experimenta o extermínio.
Numa situação como esta os meios de formação de consenso se tornam incapazes de dar conta da legitimidade da ordem e a fronteira real ou potencial de perigo se apresenta fazendo com que medidas, antes pensadas como extremas, se tornem a regra. O caso da Grécia é emblemático. Um governo progressista, eleito em torno da bandeira da resistência aos ajustes do Banco Mundial e da Comunidade Européia, faz um plebiscito para aplicar os ajustes e recebe um sonoro “não” por parte da população. Resultado: desconsidera solenemente a consulta, troca-se o governo pelo mesmo e se aplica o ajuste.
Guardadas as proporções, algo semelhante aconteceu no Brasil. O resultado das urnas em 2014 foi uma posição contra o ajuste que recairia sobre os trabalhadores, mas a presidente eleita resolveu aplicá-lo como condição inescapável de sua manutenção no governo. Os governos não governam, os parlamentos não legislam, o povo não escolhe, em poucas palavras, as formas e instituições “democráticas” evidenciam uma substância que a ideologia escondia: são formas que só podem se efetivar quando coincidem com os interesses de classe que a sustentam.
Voltando ao estudo de José Paulo Netto sobre a Ditadura, vemos que o autor não se contenta em afirmar os elementos da forma, como na vaga e imprecisa associação ao “regime autoritário”, mas nos aponta com clareza que trata-se de uma “ditadura cmm indiscutível caráter de classe” (idem, p. 83). Para nós, marxistas, está claro que todo Estado é uma ditadura de classe no que se trata de sua substância, ainda que este caráter de classe possa se expressar em diferentes formas, mais ou menos democráticas, mais ou menos violentas, mais ou menos “autoritárias”. A relação entre forma e conteúdo não é tão simples de se compreender quando tratamos do Estado burguês.
Estamos diante, ao que parece, de uma síntese bastante complexa na qual os elementos que constituem a unidade de contrários do Estado – a coerção e o consenso – se fundem para produzir resultantes diversas, mas não aleatórias. A ditadura da burguesia se apresentou em diversas formas no decorrer do século XIX e XX, desde monarquias constitucionais, democracias sem nenhuma participação popular, democracias representativas, momentos de Estado de Bem-estar social como no curto verão da social democracia européia, até formas explícitas de poder do capital monopolista como o nazi-fascismo. O que há de comum entre estas diferentes formas tão diversas, dizia Marx já em 1875 em seu Critica do programa de Gotha, é que repousam sob as modernas relações sociais de produção capitalista mais ou menos desenvolvidas. O mesmo conteúdo expresso em formas diferentes. Mas, perguntaríamos nós, estas formas são casuais, aleatórias?
Aqui, por analogia ao reino da economia política, devemos afirmar que a aparente aleatoriedade das formas, seu caráter fortuito, esconde suas determinações. O valor de troca parece variar aleatoriamente, caso a caso, mas de fato expressa suas determinações no valor das mercadorias, sua substância. As diversas formas do Estado, que parecem variar de fronteira para fronteira nacional, na verdade expressam o domínio burguês na fase do capital monopolista e imperialista, nas diversas configurações da luta de classe. A luta de classes pode incidir sobre a forma do Estado, tornando mais ou menos democrático ou exigindo uma reação mais violenta em defesa da ordem, mas parece haver uma relação comprovada entre os momentos mais agudos da crise do capital e as formas do Estado. Desta maneira, a equação a ser considerada não é simplesmente entre a dinâmica da luta de classes e a forma do Estado, mas entre a crise, a luta de classes e o Estado.
A dinâmica da acumulação de capital implica em crise. Não há processo de acumulação que não incida sobre a composição orgânica do capital levando à queda da taxa de lucro, à superacumulação, superprodução, subconsumo, desproporção entre os setores do capital e à crise como forma catastrófica de recriar as condições da acumulação. A luta de classes exprime de forma contraditória esses momentos de crescimento, estagnação e recessão que acompanham os ciclos da acumulação e reprodução ampliada do capital. Em linhas gerais, os momentos de crescimentos são mais propícios ao apassivamento dos trabalhadores e os momentos de crise levam ao confronto mais agudo entre os interesses de classe em luta, mas nem sempre as coisas se dão desta maneira. Momentos de crescimento aumentam a capacidade de barganha da classe e aumentam seu poder sindical, momentos de crise, ao contrário, a enfraquecem e a crise pode ser o cenário onde a ideologia funciona de forma mais evidente unindo interesses antagônicos para superar a crise e votar a crescer.
Na superfície do fenômeno, vemos a forma política como expressão destas correntes subterrâneas determinantes que ora apontam para o apassivamento, ora para o confronto entre as classes. As formas políticas do estado burguês derivam da alteração necessária diante do grau real ou potencial de ameaça a ordem da propriedade privada e do capital, mas essa ação pode se dar em sentidos aparentemente contraditórios. Isto é, a saída pode ser uma forma democrática (como foi a socialdemocracia diante da ameaça do socialismo no pós-guerra), ou o fascismo (nas condições da Itália e Alemanha nos anos 1930).
Esta flexibilidade só é possível por um fato muitas vezes relativizado em nossas análises. O Estado burguês, mesmo nos períodos mais democráticos, nunca descuida dos instrumentos coercitivos, isso porque, nos diz Gramsci, nos momentos do exercício normal da hegemonia, como nos chamados “regimes parlamentares”, o Estado burguês se caracteriza pela “combinação de força e do consenso” (Gramsci, Cadernos do cárcere, v. 3, p. 95). A causa disso, segundo o marxista sardo seria que o consenso é sempre provisório e frágil. Nas palavras de Gramsci, um processo de “formação e superação de equilíbrios instáveis” (idem, p. 41-42) no qual os interesses da classe dominante podem se manter como se fossem interesses universais até o ponto em que o conflito toque nos “interesses econômico-corporativos” desta classe. É o que ocorre nos momentos de crise. Mas, naquilo que nos interessa diretamente aqui, quando isso ocorre, a burguesia tem à sua disposição os meios para transitar da forma democrática para uma forma explicita de poder burguês, simplesmente pelo fato de que, assim como ensinou Maquiavel, nos tempos de paz, não deixou de se preparar para a guerra.
Isso não significa que o trânsito seja tranqüilo para as classes dominantes. São brechas pelas quais pode emergir o descontentamento das classes oprimidas e abrir conjunturas revolucionárias. No entanto, a possibilidade das classes trabalhadoras em aproveitar tais conjunturas está, em grande medida, dada pela forma como acumulou no período anterior e se, como seu adversário, não se iludiu com um idílico e eterno cenário de paz que nuca se reverteria em confronto direto.
Vistas as coisas por este ângulo, podemos afirmar que aquilo que os analistas percebem corretamente como elementos de um “Estado de exceção” – isto é, a combinação e utilização de elementos aparentemente acima do ordenamento jurídico que suspendem a democracia para protegê-la – são a regra quando tratamos do Estado burguês contemporâneo. Para nós, isso se explica pela natureza da crise do capital e seu caráter cada vez mais amplo e destrutivo no pleno desenvolvimento do capital monopolista transformado em imperialismo.
Resta saber se os elementos da conjuntura presente no Brasil apontam ou não para essa metamorfose da forma política que conhecemos bem de outros momentos. Neste sentido, nos parece que as notícias não são boas. Se nossa hipótese estiver certa, a mudança da forma obedece a três vetores: a crise, a dinâmica da luta de classes e o risco potencial ou real à ordem estabelecida. Parece evidente a profundidade e gravidade da crise, como demonstra o pífio resultado mesmo com o brutal ajuste imposto. Quanto à luta de classes, as coisas não são tão claras. Mas há indicativos que devemos considerar. Vemos uma polarização crescente, como demonstram as ocupações estudantis e a resistência de segmentos dos trabalhadores. Mas deveríamos prestar atenção também em um outro ponto, ou seja, as disputas intestinas na ordem.
A derrota do PT produziu uma acirrada disputa pelo botim entre os segmentos golpistas, gerando uma profusão de oportunismos de toda a ordem. Não se trata de um bloco dominante que se impõe, monoliticamente, contra a resistência dos trabalhadores, mas de dois blocos profundamente cindidos em contradições internas. Se é verdade que a crise faz com que os trabalhadores tenham de reagir, não é verdade que o horizonte dessa reação unifica o bloco dos oprimidos. Parte dele opera a resistência para recriar as condições do pacto de classes, enquanto outra aponta para a necessária superação deste limite que nos colocou onde estamos. Seja como for, os trabalhadores estão enfraquecidos com a derrota sofrida e com o sentido geral do que acumularam até aqui. Do lado do bloco dominante a dimensão da derrota acirra a disputa interna, numa situação na qual nenhuma força tem supremacia suficiente para se apresentar como núcleo do projeto de futuro da dominação burguesa no Brasil.
Não é exatamente a luta da classe trabalhadora que no momento ameaça a estabilidade da ordem, mas as disputas internas no grupo vitorioso. Em momentos em que os interesses particulares da burguesia ameaçam a ordem burguesa, emerge a forma universal deste interesse, o Estado cuja substância universal é o capital. Mas esta abstração tem que necessariamente se objetivar em um sujeito. Em 1964 foram os militares, mas não me parece que agora isso se repita. Os indícios apontam para outro sujeito que busca se credenciar como forma universal acima das disputas particulares em nome da substância do capital e da ordem: o judiciário.
O direito reivindicaria sua natureza não como instrumento do Estado, mas como, ele próprio, Estado. Não apenas como uma relação entre o direito público e fato político, mas o próprio direito como fato político. Caso isso se confirme, estaríamos de forma límpida no campo do estado de exceção transformado em regra, chancelada por quem de direito.
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo.