Eu gostava muito do saudoso Prefeito Chicão Gorski. Éramos amigos. Mas nossa amizade transcendia os limites formais. Éramos confidentes e refletíamos muito sobre as questões colocadas. Chicão tinha uma sabedoria fora dos padrões. Ele sacava sobre psicanálise, comportamento humano, ações e reações, e, ademais, sabia que tudo tinha dois lados, duas versões. Até hoje estou convencido de que as pessoas ainda não captaram a profundidade e a extensão do pensamento de Chicão Gorski.
Chicão sabia compreender os dramas humanos e suas tragédias. Sabia entender a tragédia. Por sacar tudo sobre normalidade e anormalidade, preferia viver com os excluídos. Chicão gostava de negros, desdentados, bêbados, prostitutas, homossexuais, miseráveis de um modo em geral, figuras exóticas e até figuras emblemáticas. Não entrava em discussões estéreis, mas ouvia e fazia uma síntese do pensamento e da visão de mundo das pessoas que se apresentavam. Sua visão de mundo era tão fantástica quanto rara.
Certa noite, Chicão bateu em minha casa depois da uma hora da manhã. Andava com duas garrafas de vinho Santa Helena e queria me emprestar o livro “O Homem Medíocre”, de José Ingenieros. Lembrou-me que as anotações (no interior do livro a lápis) com dois traços eram da Heloísa e com um eram dele. O homem medíocre é rotineiro, honesto, manso; pensa com a cabeça dos outros, condivide a hipocrisia moral alheia. Sua amizade é uma complacência servil, ou uma adulação proveitosa. Logo percebi que era uma bomba. E fazia jus à condição dele, que – prefeito – mantinha contatos diários com centenas de pessoas e de tudo extraía lições.
Chicão, por alguma razão, gostava da mim. Mas era inteligente, provocador e sarcástico, sem demonstrar o sarcasmo. Certa vez, na noite do seu aniversário, pediu para o Tavinho me ligar e queria que eu fosse até a chácara onde estava. Ao receber-me, mostrou-me um computador que houvera dado de presente para sua filhinha e justificou-se: “esse é o futuro”. Logo lascou, aqui não tem Bach, vamos escutar Gruta Azul. Era a música dos desguampados, desgarrados, dos que sofrem na noite pelo amor não correspondido de uma prostituta. Como Jean Paul Sartre, o universo das prostitutas, seu mundo, sua realidade, encantava Chicão.
Por outro lado, como engenheiro, ele sempre me dizia que as casa precisavam ser mais práticas, estranhamente ele era contra paredes internas. Achava mais prático que fosse tudo embolado e misturado, creio que aí residia sua veia anarquista.
Chicão tinha contato com alguns setores das elites locais, mas – a rigor – era combatido pela grande maioria (alô João Lemes) delas.
Hoje, analisando o quadro da época, constato que Chicão ascendeu graças a uma conjunção de esforços dos discriminados de então. Eu, João Lemes, Sidi, e outros, que sofríamos a discriminação social, tínhamos uma enorme identidade com Chicão. Nas palavras, nas artes do Sidi, demonstrávamos o poderio eleitoral de Chicão e convencemos que ele era o cara. Talvez se não houvesse aquela conjunção de forças dos discriminados, Chicão não se teria se tornado a lenda que se tornou.
Era uma pessoa rara. Coração bondoso, avesso a revides e com uma compreensão social, política e econômica, fora do normal. Era um gênio das finanças públicas, sabia ler e interpretar o orçamento público e ninguém lhe dava nó.
Para mim, ele dizia que – sobre qualquer fato – eu poderia escrever a favor ou contra. Ele sacava os jogos de linguagem como ninguém.
Quando candidato a deputado estadual, logo sentiu-se isolado. E foi quando entramos em cena. Éramos os reis dos factóides. Chicão chegava em Maçambará e poucos o recebiam. Aí arrumávamos grupos de alunos (me lembro de uma com o irmão da Eliziane). Dezenas de alunos numa foto com Chicão. E eu botei no blog: “Maçambarenses aderem em massa à candidatura Chicão”. Certamente, aqueles alunos sequer sabiam quem era Chicão, mas o efeito externo do blog e a manipulação que eu fazia (sem ninguém saber, exceto nós) assustava os contra de sempre. E logo foram aderindo e a candidatura ganhou fôlego. Era um jogo da sabedoria e da astúcia contra o poder financeiro das elites do sindicato rural que bancavam outro nome, regado a churrascadas e com o peso do dinheiro.
Chicão ultrapassou os 20 mil votos dentro de Santiago. Foi a maior votação da atualidade. Uma vitória incontestável, pois ainda enfrentávamos o peso do grupo da Professora Aida Bochi e seu extenso grupo capitaneado pelo blog do Rafael Nemitz, que era nosso maior adversário e fazia campanha para a candidata Mônica Leal.
Não fui na festa de Chicão no dia da vitória. Só quando tudo terminou fui lá lhe dar um abraço e o cumprimentar-lhe pela vitória. E ele lascou: “estava te esperando”. Passou o meu celular para a Eliziane, pegou uma foto da Mônica Leal que estava em seu bolso e fez eu tirar uma foto com ele beijando a propaganda eleitoral da candidata apoiada pelo grupo da URI e Rafael Nemitz. Queria que eu publicasse a foto no blog. Achei que seria muita provocação.
Eleito, foi cercado pelos abutres. Retirei-me quieto. Nunca mais nos falamos.
Chicão fechou com o grupo que defendia a plantação de exóticas no bioma pampa. Nós éramos contra. Chicão, na comissão de agricultura da AL, se tornou um problema para nossa luta contra o eucalipto e o pínus.
Quebramos os pratos. E foi um tiroteio.
Tavinho, hábil e diplomático, sentindo que o racha não teria mais conciliação, parte para uma ação de entendimento e reacordo entre os velhos aliados. Liga-me e marca que Chicão iria em minha casa do domingo a tarde, as seis (18 horas) de domingo.
Chicão chegou no horário exato. Conversamos até 21.10. Ele nos ouviu atentamente, fizemos um acordo. Em cada seminário presidido pela comissão de agricultura ele convidaria um dos nossos da UFRGS, o Buckup ou o Pillar. Explicamos a ele sobre os danos da monocultura de exóticas na nossa natureza e ele saiu com um monte de materiais para ler.
Ele insistiu o tempo todo que se sentia devedor para comigo. Eu neguei. Mas ele, sabedor que a Eliziane estava iniciando Doutorado na UFRGS, faz-nos uma proposta. Tinha um apartamento montado, com tudo, internet, TV a cabo, mobiliado, perto do Carrefour, em Porto Alegre. Pede para nós pegarmos a chave com o Tavinho e diz que ali poderíamos ficar enquanto a Eliziane cursasse o Doutorado em Ecologia, na UFRGS. Selado o acordo.
Era domingo. Sequer tivemos tempo de pegar as chaves com o Tavinho.
Na madrugada fatídica, 5 dias após nosso reencontro, eram quatro horas da manhã. Eu estava no computador. O telefone da Eliziane toca. Era a secretária de saúde, a Mara Machado. Só ouço a Lizi pronunciar: morreu?
Mara diz que estava me avisando do acidente.Tinha avisado o prefeito Ruivo e eu era a segunda pessoa que ela avisava. Mal acreditamos. Posto no blog.
Pegamos a Nina, enrolada num cobertor, e fomos até o local. Uma ambulância acabara de sair com o corpo. No local, a PRF, Rafael Nemitz e Arami Fumaco.
O corpo no necrotério. Centenas de pessoas afluíram a frente do Hospital.
Era o fim de uma era.
O tempo passa.
A Eliziane, contrariando tudo que pensávamos e defendíamos, decide fazer Doutorado em Engenharia Florestal, na USFM, que eram nossos maiores inimigos no combate ao plantio de exóticas no bioma pampa. Foi o começo do fim. Tavinho se foi. Rafael Nemitz virou aliado PP. Tiago Gorski move mais processos contra mim que Vulmar Leite moveu. Outro dia, eu caminhava pela rua e encontrei a secretária de educação Mara Rebelo. Ela, ao me ver, para não me cumprimentar, atravessou a rua. Na frente do Chicão gostava de dizer que era minha prima.
Eu perdi minha casa, a esposa, os melhores amigos. Hoje, perseguido e caçado como uma fera humana pelo próprio PP, vivo para me defender e sobreviver com o único amor que sobreviveu: o da minha filhinha.
Domingo à noite, Nina me proferiu uma frase chocante: – tu não tá sozinho no mundo pai, tu tem eu.
Pelo sim, pelo não, continuo vivo e escrevendo. Sempre disse que minha trincheira era a escrita. As letras são minhas armas e Deus, meu consolo e fortaleza.
Meu blog, execrado, amado e odiado, dia 22 de março de completará 18 anos de atividades. Os blogs mais antigos de Porto Alegre comemoram 15 anos.
Vou enfrentando os obstáculos pelo caminho. Sei quem aconselhou/sugeriu quem a agir contra mim. Hoje sei tudo. Não preciso de grandes esforços. Vivo com a pureza da razão e a crença num certo fatalismo histórico. Sei que se pudesse voltar atrás, faria tudo de novo. Não me arrependo de nada. Parafraseando Fernando Pessoa: “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. É assim que eu penso, mesmo ao sabor de todos os desconfortos, perdas, danos, derrotas e perseguições.
Poderia ser cálido?
Resistência é a palavra.