* TARSO GENRO
O atual processo de ataque a direitos, de restrição de fato das liberdades de circulação da opinião e de judicialização plena da política, será de longo curso.
A estratégia comum das esquerdas “pensantes”, referindo-me sem ironia àquelas que refletem em passos táticos na luta política, o objetivo estratégico de promover candidaturas próprias à Presidência, sem abrir mão da sua visão programática e, ao mesmo tempo, de defender como irrecusável, o direito ao registro da candidatura do Presidente Lula, é um momento vital para compor um outro cenário político, no próximo ciclo republicano no Brasil. Seja este ciclo mais democrático, ou menos democrático, suponho que o atual processo de ataque a direitos, de restrição de fato das liberdades de circulação da opinião e de judicialização plena da política, será de longo curso, para cujo desfecho devemos nos preparar desde agora.
O Brasil experimenta um momento novo na agudização da luta de classes, desde a Constituição de 88. A partir do golpe midiático-parlamentar, que vitimou o Governo legal e legitimo da Presidenta Dilma, as mediações tradicionais da democracia liberal, que geravam determinados rumos, orientados por maiorias, foram substituídos por decisões aparentemente sem “sujeito”, naturalizadas pela grande mídia, como se fosse iniciada uma espécie de revolução francesa contra a corrupção. O contra-reformismo social, o leilão espúrio da nossa riqueza energética, o desmantelamento cuidadoso das funções públicas do Estado, provam que este não é um processo sem autores. Nem uma política sem “sujeito”. Muito menos um movimento estratégico de combate à corrupção, dadas as características dos personagens que compõem o Governo Temer.
Neste novo universo, parte dos partidos de esquerda ou progressistas, foram neutralizados por cooptação de um número expressivo dos seus parlamentares, paralisados por processos judiciais justos ou injustos (mas sempre seletivos), contra algumas das suas lideranças mais expressivas, bem como foi anulada a voz pública dos seus representantes mais audazes. Os partidos mais tradicionais anularam-se pela covardia\adesão, das suas maiorias parlamentares, corruptas ou temerosas do massacre da mídia contra a política. O processo político, que caracteriza, então, o contencioso democrático, foi pautado de lugares aparentemente invisíveis, com o respaldo extraordinário de uma parte significativa do Poder Judiciário e do Ministério Público.
A agenda política nacional passou, nestas novas condições, a ser escrita – já na derrubada ilegal da Presidenta Dilma – pelos centros de inteligência neoliberal-capitalista, o oligopólio das comunicações, as agência financeiras privadas, rede, esta informal, apoiada por líderes e dirigentes dos partidos tradicionais, que já são indiferentes aos interesses imediatos dos seus próprios partidos. Aqueles líderes passaram a operar, portanto, como correias de transmissão desta nova estrutura de poder, que antes influenciava as decisões dos partidos. Seja pela corrupção ativa, que exerciam sobre eles, seja por acordos regionais programáticos, através das lideranças mais expressivas – leia-se protegidas pela mídia tradicional de cada região.
Não nos iludamos, esta campanha que a grande mídia agora promove contra o auxílio moradia, em abstrato (que atinge juízes e integrantes do MP de forma indistinta, independentemente da responsabilidade de cada um, no pagamento de tais valores) não é derivada de uma ética republicana deste centro de poder político, que são as redes de comunicação nas mãos de dez famílias ricas. É, certamente, uma ação tática de envergadura para um maior enfraquecimento moral, da única instância da República que pode – nas circunstâncias atuais – reverter o quadro de “exceção”, instituído pela República de Curitiba, aliás, com o apoio majoritária dos seus pares, em todo o território nacional. Uma causa justa usada, taticamente, portanto, para submeter este Poder da República, a uma maior vassalagem aos interesses daquele complexo de poder político, que vem “de fora” dos Partidos e que, como dizia Oscar Wilde, “não ousa dizer seu nome.”
Assim como este poder, aparentemente anônimo, usou e descartou Cunha, usou e descartou Aécio, usou e descartou Gedel, usou e descartou os “anônimos” e nem tão anônimos fascistas e radicais de direita, de todas as espécies, “movimentos livres”, liberais, neoliberais, grandes pequenos rentistas, usou Moro e Dallagnol, poderá, sim – depois de usar uma parte significativa do Sistema de Justiça – dizimar moralmente o que resta do Poder Judiciário, suprimindo todas as saídas institucionais e negociadas para a crise, dentro da ordem de 88.
Não é gratuito que esta campanha de pressão – que é também uma proposta de acordo à medida que ela pode desaparecer de uma hora para outra – ocorra precisamente no momento em que o Supremo irá julgar o “Habeas Corpus” do Presidente Lula. Neste momento, o sistema de poder paralelo ao Estado e aos partidos, está dizendo aos Juízes: “se comportem, vejam o que nós podemos fazer com vocês.” É um moralismo pragmático, de bordel, usado como instrumento político e não uma crítica séria da distribuição injusta da renda pública, que é tão injusta como a distribuição da renda privada, no modelo neoliberal em curso que eles promovem com fé e autoritarismo.
Uma relação horizontal de discussão programática, entre as equipes das prováveis candidaturas de esquerda, para buscar localizar pontos comuns de uma programa mínimo de transição – dentro da ordem de 88 – se impõe neste momento. Seria a busca de uma saída da economia liberal-rentista, em vigor, para uma economia de crescimento e geração de renda, com uma inserção internacional baseada na cooperação interdependente com soberania, sem submissão ao capitalismo financeiro hegemônico na atual ordem global. Isso, que poderá ocorrer, sem que as partes percam as suas características e abdiquem dos seus “programas máximos” para o futuro, parece ser a melhor fórmula democrática, para que novas forças políticas governem e mudem o país para muito melhor, seja a partir de 18, seja num futuro próximo nem tão remoto.
(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.